domingo, 3 de fevereiro de 2019

Tarso Genro: Bolsonaro é um neoliberal recente, mas é neofascista antigo



No final de uma agenda política e acadêmica intensa entre Espanha e Portugal, ex-ministro e governador do Rio Grande do Sul, Tarso Genro concedeu uma entrevista exclusiva para o Brasil 247. No qual procurou sinalizar algumas possibilidades de reorganização da esquerda brasileira, mas também a importância da cooperação internacional dos partidos, governos e organizações de esquerda contra esses movimentos ascendente da extrema-direita.

Brasil 247 – O senhor tem passado regularmente por Portugal nos últimos anos, tem colaborado com o Centro de Estudos Sociológico de Coimbra (CES), coordenado pelo professor Boaventura de Sousa Santos?

Tarso Genro: Eu tenho uma colaboração intelectual com o professor Boaventura de mais de 30 anos. Na minha gestão como prefeito de Porto Alegre viabilizei uma relação dele com o orçamento participativo e foi a partir dos estudos que ele realizou nesse período que nós construímos um diálogo político e intelectual que nos aproximou muito. A partir disso eu consegui ampliar uma rede de relações com o objetivo de introduzir as teses e concepções do Boaventura no grupo político no qual pertenço (dentro e fora da academia e do partido) e me relaciono há muitos anos. Como contrapartida tive a oportunidade de participar de muitos eventos organizados pelo CES, participando ativamente em muitos debates, colóquios, palestras, entre outros.

Por outro lado, isso tornou-se um regime de integração política da nossa militância, ele dentro da academia e das suas relações políticas no Brasil (que são muito amplas) e eu dentro do Partido dos Trabalhadores e na esfera para-partidária, onde me dedico com muita intensidade hoje, principalmente pelas circunstâncias históricas que o partido vive. Os debates intelectuais, teóricos e de fundo sobre as concessões da esquerda, socialismo, social-democracia, a democracia e as suas crises são muito pequenas dentro do partido (PT). Nesse sentido a nossa relação se frutificou por causa desse tipo de complementaridade. Eventualmente, termos divergências, mas possuímos uma relação política de muita confiança.

247 – Que breve análise o senhor pode fazer dos primeiros dias de governo de Jair Bolsonaro, a partir de uma perspetiva acadêmica e fora do turbilhão político brasileiro?

TG: Na minha visão a eleição de Bolsonaro como presidente do Brasil é um acidente político no processo de dominação das oligarquias burguesas, que são articuladas por meio do oligopólio da mídia, think tanks internacionais e lideranças da chamada direita tradicional, esses seguimentos sociais se desenvolvem de maneira planejada e regulada contra a esquerda e a democratização do estado brasileiro. Por que ele é um acidente? Porque no cálculo desse Partido (no sentido da I Internacional Socialista e gramsciano, como sendo uma parte da sociedade que se organiza a partir de concepções) Bolsonaro não estava presente. Eles queriam um candidato que desse o mínimo de dignidade política para implementação do projeto neoliberal no Brasil. Mas eles acabaram por encontrar o Bolsonaro no caminho como elemento de coesão e força para ser jogado contra o PT, a esquerda em geral, os pequenos avanços populares, econômicos, de proteção social e nos costumes que foram desenvolvidos nos governos de Lula da Silva.

Como a direita tradicional não conseguiu cacifar nenhum líder com esse nível verniz civilizatório, eles se obrigaram a apoiar Bolsonaro como a única saída. Uma saída providencial. Pois para esse Partido composto por uma elite política, ruralistas e grande parte da burguesia industrial – com valores retrógrados, conservadores e reacionários – a democracia é algo secundário. O que realmente interessa para eles são as reformas para uma implementação radical da agenda neoliberal, bem como salvaguardar os interesses do grande capital financeiro, proprietário dos títulos da dívida pública brasileira. Essas agências nacionais e internacionais do capital financeiro também dominam a comunicação e informação, por consequência têm o controle da formação da opinião pública.

Na circunstância de não conseguirem viabilizar os seus candidatos tradicionais, as elites não titubearam em optar por Bolsonaro ao invés da democracia, pois queriam evitar a volta do PT a qualquer custo. Mas eles pretendem fazer do Bolsonaro um instrumento dos seus interesses, visto que ele não era um quadro político de tradição no Brasil. O mesmo aceitou e se conformou com tal situação pois se coloca como uma espécie de "aiatolá" dos costumes, do atraso e do conservadorismo. Porém a serviço do Partido colocou na área econômica um ultraliberal como Paulo Guedes, pois ele é quem faz a ponte com os interesses desse Partido dominante da direita brasileira e do governo bolsonarista.

Tudo isso é uma experiência muito perigosa, inclusive para setores da classe média alta que apoiam esse governo. Porque é verdade que o Bolsonaro é um neoliberal recente, mas ele é um neofascista antigo. A visão dele é autoritária, de semeadura do ódio, que não hesita em apelar para o medo a fim de intimidar os adversários. Um apoiante aberto da tortura e da ditadura. Tudo isso a elite brasileira ocultou ou não deu a ver. Pois sem saída eles teriam que torná-lo um candidato viável. Particularmente ainda não tenho uma perspetiva de como essa conjuntura vai se desenrolar, pois é uma situação atípica no processo político brasileiro, porque nunca tivemos uma extrema-direita tão odiosa e as próprias Forças Amadas do Brasil a funcionarem como uma espécie de poder moderador, a fim de garantir essa aliança entre as elites e o bolsonarismo.

O Brasil é hoje um país que tem uma corrosão democrática bastante grande, da sociedade para dentro do Estado, como do Estado para fora. O Poder Judiciário está muito vulnerável a pressões dos mais variados tipos e segmentos. Portanto, é possível constatar que ocorreu uma mudança de hegemonia, porque os valores da solidariedade, da democracia, do respeito ao adversário, do contencioso político, ainda que radical, mas que não apelava para violência, tudo isso está superado. A "democracia" no Brasil é um vale tudo de quem tem mais força, mais poder e quem mais capacidade de disseminar a violência e intimidar o adversário. Esse é o resultado do processo que está aí e por isso essa total indeterminação sobre o futuro do país.

247 – De um modo geral tem se pedido uma autocrítica da esquerda, a fim de perceber onde erramos e como chegamos a essa atual situação. Dentro dos quadros do PT o senhor é um dos poucos que tem procurado fazer tal coisa. Por que essa dificuldade do seu partido em fazer um balanço?

TG: Essa dificuldade tem vários motivos, alguns deles motivos respeitáveis e fortes, mas o principal é a prisão do ex-presidente Lula. Vários companheiros da maioria partidária (eu integro o campo na minoria) dizem com sinceridade: nós fazemos o debate sobre as nossas responsabilidades enquanto governo e partido internamento, pois se fizermos para fora seria enfraquecer a situação do Lula na cadeia. Pois o modo operante (perverso) desse novo Partido, que mencionei anteriormente, ele corroeu o amor próprio da classe trabalhadora, de setores da intelectualidade que apoiavam o Lula e jogando sobre o ex-presidente uma responsabilidade que ele não tem. Não é que o Lula não tenha errado politicamente em várias circunstâncias, todavia não foi por causa desses erros que Lula está preso e a ex-presidente Dilma Rousseff foi golpeada, mas justamente pelas suas virtudes. O que sustenta essa tese são os governos que os sucederam. Observemos o governo de Michel Temer, era uma confederação de denunciados, corruptos e investigados e o governo Bolsonaro que com menos de um mês já se percebe pessoas do seu entorno envolvido com as milícias (o maior núcleo criminoso da história recente do Brasil).

Temos outras dificuldades e acredito que a mais simbólica é a delação premiada do (Antônio) Palocci. Quem sabe efetivamente o que o Palocci diz de verdadeiro para se defender? O que ele mente voluntariamente, o que ele informa de maneira equivocada? O que ele apresentou para que as estruturas oficiais aceitassem as suas delações para chegar ao ponto de que ele chegou? Então fazer uma autocrítica mais aberta seria perigoso, pois estaríamos a entrar num terreno pantanoso.

Por final tem uma questão de concepção que dificulta essa autocrítica que é aquela visão de que uma acirrada luta de classes nos obrigaria uma certa coesão – mesmo que formal – para resistir aos assédios internacionais e internos contra a democracia brasileira. Mas não pensem que as pessoas não discutem dentro do PT ou até mesmo fora do partido, visto que existe uma sociedade civil petista bastante grande que também discute essas questões.

Acredito que isso não se tornará público, pois enquanto o Lula estiver preso não se fará nenhuma análise em profundidade. Porque a prisão do ex-presidente, se tomarmos o principio fundamental da igualdade de trato, a igualdade formal do sistema de justiça, podemos concluir que a prisão do Lula é de exceção, portanto, ele é um preso político. E isso é um motivo relevante para que essa autocrítica não seja realizada. Todos os partidos devem fazer essa avaliação, pois o sistema partidário brasileiro está bastante vulnerável. O que nós achamos engraçado é que a classe dominante brasileira e os seus apostatas estão a dizer todos os meses que o PT acabou, que Lula acabou, mas o único partido que saiu relativamente inteiro do último processo eleitoral foi o PT, porque os restantes dos grandes partidos se dissolveram.

247 – Nesse sentido de fazer uma autocrítica e análises de toda essa conjuntura política, como o senhor acredita que a esquerda (movimentos sociais e partidos) brasileira fará uma frente de resistência e oposição aos retrocessos que o governo bolsonarista pretende colocar em ação?

TG: Esse processo de formar uma nova frente política no país tem que ser feito, evocado e chamado por quem tem o poder convocatório. Mas acredito que esse movimento tenha que se desenvolver em três níveis.

O primeiro deles são as frentes políticas e sociais que se constituem nos movimentos de massas, que se ampliam ou diminuem conforme o tempo ou as pautas que são colocadas. Os dois movimentos sociais de maior importância no Brasil, MST e MTST, por exemplo, podem acordar determinadas pautas na defesa recurso para área social e enfrentarem o governo Bolsonaro. Assim como noutros momentos as confederações e centrais sindicais podem fazer uma unidade em função de determinados temas (salário mínimo e previdência).

O segundo nível da frente envolve uma componente mais ativa e propositiva, pois deve refletir no comportamento dos parlamentares. A formação de uma frente política parlamentar que envolva todos os partidos que se oponham a introdução do modelo neoliberal no Brasil, mesmo que seja um acordo de conveniência para as regiões, que não envolva questões de princípios. Essa frente deve trabalhar em cima dos projetos que forem enviados pelo Bolsonaro e projetos que teremos que propor para defender os interesses populares. Essa frente terá um núcleo mais orgânico, que se irá reduzir ou aumentar conforme o tema.

A outra frente importante é aquela que nos prepare para um combate eleitoral em situação de dificuldade. Vamos supor que estejam garantidas as eleições de 2022 – não sabes se isso ocorrerá – caso esse calendário seja cumprido temos que fazer um esforço para que os partidos de esquerda, centro-esquerda, agrupamentos centrista-democráticos e personalidades da sociedade civil, mas que convirjam numa frente destinada a disputar eleições e o preferível seria que tivéssemos candidaturas unitárias. Ou, que preparemos dois ou três candidatos para que estejamos juntos no segundo turno. Esse seria o terceiro nível, uma frente programática que tem como objetivo central disputar as eleições presidenciais, a levar em consideração que esses processos eleitorais continuem.

Quem deve defender isso é que tem o poder convocatório, o que eu tenho defendido é que os partidos do campo da esquerda busquem compor uma mesa política com personalidades independentes, dirigentes dos movimentos sociais ou políticos progressistas. Essa deve ser uma mesa de unidade política para derrotar o projeto neoliberal no Brasil em todos os campos, inclusive o eleitoral. Isso pode começar agora nas eleições municipais nas principais cidades. Mas não sei se os partidos têm traquejo e maturidade para julgar isso importante. Porque seria uma experiência semelhante à francesa, que formou aquela frente de esquerda plural após a derrota de François Mitterrand, e a experiência portuguesa da "geringonça". Pois são dois exemplos a ser levados em consideração para que tenhamos possibilidades dessa disputa.

247 – Juntamente com ex-presidenciável, Fernando Haddad, o senhor percorreu Portugal e Espanha a fim de conversar com várias lideranças políticas de esquerda. Acredita ser possível construir uma frente de esquerda internacionalista numa pauta comum contra os avanços da extrema-direita e do fascismo?

TG: Se não for encontrada essa pauta comum no plano internacional ela não se irá realizar internamente. Hoje não temos nenhuma questão nacional que não esteja conectada no plano internacional. Como se irá sustentar um governo progressista sem um apoio internacional? Sem ter o suporte de partidos de esquerda da União Europeia e mesmo de dentro da política estadunidense no partido democrata; ou um diálogo com governos progressista em outras partes do mundo. A principal mudança é sair de uma relação de submissão ao capital financeiro internacional a fim de organizar a sua economia e estabelecer uma relação de cooperação interdependente com soberania, mas isso é o limite máximo, dado pelo próprio capitalismo já previsto pelo velho Marx. Isso não é nenhuma novidade. O que mudou? A questão democrática está subsumida na questão do capital financeiro. Ou seja, se você não cria um ponto de convergência e equilíbrio entre os interesses nacionais e o mundo globalizado. Porque se formos analisar os procedimentos dos grandes barões do capital financeiro global eles não estão nem um pouco preocupados com democracia.

Por exemplo, o que afasta eles da Venezuela não são a questões democráticas? Mas sim o projeto semiautárquico da Venezuela, que procurou fazer distribuição de renda. A crise aumentou pela desvalorização do preço do barril do petróleo, diminuindo a capacidade distribuição de renda, mas essa elite do capital financeiro só está com medo que a Venezuela não consiga pagar a sua dívida, mas especificamente a sua dívida pública. Esse é o problema que eles têm com Venezuela.

Qual é o problema que eles têm com a China? Nenhum, pois ela é proprietária de 15% da dívida pública norte-americana. E a China é um país que tem uma estrutura política de ferro (contenção, sistema de partido único e um supercontrole do Estado na iniciativa privada) e que também desenvolveu um programa de inclusão econômico-social, como nenhum outro país fez, em tão pouco tempo. O que nós temos que ter no centro de uma visão programática para tirar o Brasil das garras do ultraliberalismo é o seguinte: qual é o ponto ideal para conseguirmos o equilíbrio interno e externo para estabelecer um processo de colaboração autodeterminado, com soberania, sem se submeter ao projeto neoliberal? Para ser sincero, sobre essa questão ainda não visualizei qualquer resposta concreta. Só temos alguns esboços.

Hoje existem vários grupos que estão a discutir um desenvolvimento alternativo, inclusive diferente daqueles que aplicamos no governo Lula, que só foi possível aplicar porque, magistralmente, o Lula percebeu que tinha o financiamento das commodities. Lula disse: "agora esse povo vai sentir o gosto da distribuição de renda", que foi a conquista mais magnifica do seu governo. Isso é tão forte que essa memória se mantem muito forte nas camadas populares pobres do Brasil. Mas posso dizer que aquela frente política que possibilitou tais avanços não existirá mais, para tal precisamos construir uma nova frente política e outra proposta de desenvolvimento econômico.

247 – Para essa nova frente de esquerda não será necessária uma radicalização da ação política, senhor ministro?

TG: Depende do que nós tomamos pela categoria de radicalização. Uma coisa é a radicalização democrática, em última análise é obedecer as constituições sociais que vieram do século XX, do qual a constituição portuguesa é magnifica e também a brasileira. Acredito que esse seja um patrimônio da esquerda, radicalizar a democracia. Estimular formas de participação e criar instrumentos de controle de fora para dentro. Compreender a especificidade dos movimentos sociais e a responsabilidade que se tem para aprofundar a democracia. A fim de impedirmos essa onde fascista que tem assombrado o mundo.

247 – No contexto dessa breve reflexão que apresentou, acredita que temos possibilidades reais de vencer essas forças reacionárias? Ou está cético?

TG: Acredito que nesse sentido envolve uma questão de personalidade, eu sempre fui o quadro político que procurou misturar um pouco ceticismo com elementos utópicos que nos fazem ir em frente. Mas a minha visão em relação a situação brasileira é um pouco mais do que cética. A perspetiva de que estamos na beira de uma tragédia.

247 – Esse ceticismo envolve a possibilidade de Lula jamais sair da prisão?

TG: Só o fato de admitirmos que isso pode ocorrer exemplifica o grau de ceticismo que estamos a passar. É claro que esse sentimento não irá diminuir o nosso espírito de luta, de militância, mas justamente o contrário só irá nos fortalecer ir em frente. É importante também ter prudência naquilo que nós transmitimos, pois não podemos criar uma expectativa na juventude que as coisas estão caindo e ali na esquina está o resgate da democracia brasileira. Acho que não, pois acredito ser uma luta dura e para a qual nos temos de preparar para as piores possibilidades.

247 – Uma mensagem final aos leitores do 247?

TG: Dentro dessa conjuntura complicada no Brasil surgiu uma geração de lideranças políticas extraordinária, que fazem um contraponto a esse pessimismo ou uma certa amargura. O que nos aciona para a militância e evita qualquer sentimento de passividade é saber que temos lideranças como Fernando Haddad, Manuela D'Ávila, Marcelo Freixo e Guilherme Boulos, pois eles são um sinal de esperança e coragem para todos nós!

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